JIM CRACE

A MORTE É BELA

Mal concluiu A Morte nas Dunas, Jim Crace ficou doente, meses a fio. Tinha enterrado o pai, um funeral em prosa. E nessa morte sem consolo, descobrira que a vida é bela.

José Prata

A entrevista já acabou quando Jim Crace diz abruptamente: "Eu arrego uma culpa". Fica em silêncio do outro lado da linha, mas já é demasiado tarde, não pode voltar atrás. O dique rebenta, as palavras precipitam-se: "Carrego uma culpa, percebe? A minha mãe e eu não aguentávamos mais. O meu pai já estava doente há tanto tempo, nós tínhamos de fazer tudo, até levá-lo à casa de banho. Estávamos tão fracos e cansados que acabámos por mete-lo no hospital. E nesse mesmo dia ele morreu, no hospital, sozinho."

Foi em 1979, décadas antes de publicar o seu sexto romance, A Morte nas Dunas. "E apesar de logicamente saber que não o matámos – prossegue Jim –, uma parte de mim continua a pensar que o abandonámos. Estávamos cansados, no fim da linha, mas arrependo-me tanto de não termos aguentado mais 24 horas – para que que ele pudesse morrer connosco, na nossa casa. E eu nunca, mas nunca, perderei esse sentimento de culpa. Irá comigo até ao meu leito de morte, por mais que o racionalize, por muito que saiba que é idiota estar a punir-me."

Ainda viu o pai, cinco segundos, talvez nem isso. O tempo de uma despedida infame, apressada, antes do cadáver ser reduzido a cinzas. "Ele teve um funeral ateu, o que foi terrível. Não havia ninguém presente, nem canções, nem discursos, música ou flores. Ele tinha-nos dito: depois de ser cremado quero que deitem as cinzas fora. E porque nós gostávamos muito dele, fizémos o que nos tinha pedido. Foi um erro imperdoável."

O jogo da memória

Os mortos tem de ser chorados. Mas como, se Deus não existe? "O meu pai era ateu, os meus filhos são ateus, o espírito dos tempos e o futuro são ateus. Tenho certeza que serei ateu, até morrer", frisa o escritor.

"Herdei do meu pai um ateísmo frio e cinzento, do tipo professado pela esquerda inglesa dos anos 30. Nesses tempos, dizer que não acreditavas em Deus era dizer que não acreditavas no Estado. A classe governante controlava tudo, desde os bancos às universidades, passando pela linguagem e a Igreja."

O pai morreu heroicamente à esquerda, um corpo já desprovido de alma, bom para deitar fora. Traiçoeiramente, porém, continuou a existir para além das cinzas. Na memória do pai, o filho foi descobrindo uma inesperada permanência, uma vida que se prolongava.

"Muitas religiões defendem o argumento infantil de que não devemos temer a morte, porque esta representa apenas uma mudança, iremos para outro lugar, onde viveremos eternamente. É um argumento falso. Mas mesmo sendo ateu acredito numa forma de vida para além da morte, simbolizada por aquilo que uma pessoa criou ao longo da sua existência. O meu pai morreu em 1979, mas ainda há pouco, quando lhe falava acerca dele, era em termos de amor. Alguma coisa sobreviveu pois à sua morte, posso contar histórias sobre ele e recordá-lo com afecto."

Em A Morte nas Dunas as duas personagens principais estão mortas desde o primeiro parágrafo. Surpreendidas no acto de amor, assassinadas por sucessivos golpes de granito, não passam de dois cadáveres na praia. Mas os dedos de Joseph ainda acariciam a coxa de Celice. E a filha de ambos, confrontada mais tarde com os corpos em decomposição, vê naquele gesto uma história de amor.

Uma forma de imortalidade

"O meu ponto de vista, embora sentimental, atravessa a essência da espécie humana: o amor, entre outras coisas, pode durar. E isso para mim é uma forma de ressurreição", defende o escritor britânico. "Em A Morte nas Dunas tentei mostrar que mesmo os corpos implacavelmente mortos deixam uma marca no mundo. No caso de Celice e Joseph a marca é visível até na relva onde estavam deitados."

Não é a imortalidade, mas aproxima-se. "Os meus filhos não recordarão o meu pai, que nunca chegaram a conhecer. A marca dele desaparecerá quando eu próprio morrer. Mas mesmo não sendo eterna, essa sobrevivência mostra-nos que a nossa vida tem um objectivo."

Celice e Joseph apodrecem nas dunas. A carne é um festim para gaivotas, caranguejos, moscas varejeiras. Passam-se os dias, seis ao todo. "Pessoalmente, não tive muitos encontros com a morte humana. Tenho 55 anos, fui jornalista até aos 40, mas nunca vi cadáveres. O único em que toquei foi precisamente o do meu pai, e durante uns cinco segundos", admite Jim.

"Mas é um erro pensar que a morte dos seres humanos é diferente, as pessoas esquecem-se que somos animais e morremos como eles. Sou fanático dos passeios a pé. Quando caminho no campo, ou ao longo da praia, encontro carcassas de raposas, de gaivotas, restos de caranguejos em putrefacção. A morte em termos absolutos está em todo lado. Mas a morte dos seres humanos é-nos escondida."

Reinventar a morte

No romance a morte está exposta, como uma ferida aberta. Jim Crace não fez qualquer tipo de pesquisa científica, limitou-se a tratar Celice e Joseph como se fossem animais largados na praia.

"Não quis ser redutor ou questionar a sacralidade da vida humana. Fi-lo porque tenho uma grande estima pelo mundo natural. Todas as minhas experiências espirituais estão relacionadas com a natureza. Não defendo a religião, de modo algum, mas os seres humanos são naturalmente espirituais, têm um lado místico, que torna as religiões tão poderosas. Não deixarei de procurar o sentido transcendente da existência pelo simples facto de não acreditar em Deus."

Na descrição dos cadáveres, da lenta decomposição de Celice e Joseph, Jim Crace frisou a fatalidade da morte. Mas transcendeu-a pela poesia, inventou factos biológicos, processos químicos. Houve leitores indignados, como um patologista do ministério do interior que veio a público refutar, ponto por ponto, a verdade do romance.

"Fiquei na dúvida, a interrogar-me se esse patologista alguma vez teria lido um romance na sua vida. Será que ele pensa que o Ciclope existe? E o Minotauro? Aquilo de que os meus livros falam não existe, invento tudo, é isso que fazem os contadores de histórias."

O contador de histórias

A Morte nas Dunas é ficção, do princípio ao fim. Há insectos inexistentes, fenómenos zoológicos inventados, e até livros falsos citados com propriedade como O Peixe de Mondazy. "A arte de contar histórias é tão antiga como o ser humano", lembra o escritor.

"As histórias é que nos tornam bem sucedidos enquanto seres humanos. É com elas que arranjamos namoradas e empregos. Nos restaurantes, nos bares, em casa, as pessoas contam e ouvem histórias. E se o fazemos há milhares de anos, não é por acaso, mas sim por razões evolucionistas – ao narrar temos uma vantagem sobre os outros animais."

O caminho científico deve ser deixado aos investigadores. Jim Crace prefere procurar a verdade noutros lados. "Por isso sento-me e penso: inventa, inventa, inventa. E depois vejo se há ou não verdades paralelas a descobrir."

Se investigasse a fundo o processo de decomposição dos corpos, e descobrisse que apodreciam não em seis dias mas em seis meses, não poderia escrever o mesmo romance. "Das duas uma: ou resumia a acção a seis dias e os corpos não apodreciam, ou prolongava o livro durante seis meses e teria outra história. Um escritor realista obedeceria à ciência. Eu prefiro moldar a realidade aos livros. Sou como o contador de histórias dos grandes mitos. Se quero retratar os problemas da sociedade de Creta, invento uma jaula e coloco lá dentro uma besta chamada Minotauro."

E se quer dar um nome à morte, chama-lhe peixe. Como o terrível Peixe de Mondazy, uma lenda fictícia que percorre A Morte nas Dunas, emprestando ao romance mais um pouco do realismo mágico em que o autor se revê. "Já tinha localizado o livro na costa. Peixe e mar estavam na minha mente. Estava à procura de uma imagem para a morte. A imagem de um peixe servirá?", perguntou-se o escritor.

"Escrever para mim é como lançar papagaios de papel. O rapaz que segura nas mãos o cordel não controla o vento. E o vento que empurra o papagaio não controla o rapaz. Algures entre o vento e o rapaz, o papagaio está a ser mediado, está a criar um padrão. Para mim o papagaio é o romance. Apesar de ter o cordel na minha mão, não controlo o vento."

E reside aí o grande prazer da escrita. Todos os dias Jim Crace vai para o escritório e descobre que desenhou um padrão inesperado, que não compreende, que não pode explicar. "De onde veio portanto o peixe? Nunca lhe poderia dar uma resposta correcta. Foi empurrado pelo vento para dentro do livro."

Narrativas de conforto

Quanto melhor corre um romance, mais facilmente abandona o seu autor. "Os leitores pensam em geral que os livros são uma imagem espelhada do escritor. Para mim são entidades separadas, não se reflectem. Quando comecei a escrever Quarentena sentia-me um ateu radical de esquerda. Não acreditava em Deus ou Jesus. Mas o livro acabou por ser muito mais ‘evangélico’ do que eu. E até hoje recebo cartas de leitores, particularmente de cristãos americanos, que me dizem: ‘O seu livro tornou as minhas crenças ainda mais fortes.’ É muito estranho que um ateu como eu tenha escrito um livro que não é anti-Jesus."

Ou talvez não. "Ficção e religião são primas direitas. Ambas entram no espírito das pessoas contando-lhes histórias", afirma o escritor. "A religião cristã é essencialmente narrativa. Não admira que tantos escritores (como José Saramago) procurem aí inspiração. É quase como se eu, João, Lucas, Marcos e Mateus, fôssemos camaradas, todos nós a contar mentiras."

Através da ficção, as religiões podem ser úteis, ajudam a lidar com crises pessoais, particularmente de foro emocional. "Elas oferecem uma maneira de lidar com a morte, ao passo que o ateísmo não oferece nada. Ao escrever A Morte nas Dunas quis testar a minha capacidade de criar uma narrativa de conforto num mundo sem Deus."

Como? Recordando a vida dos mortos. Celice e Joseph não foram parar à praia por acaso. Naquela mesma baía, muitos anos antes, fizeram amor pela primeira vez. E quando lá regressam, em idade crepuscular, são movidos pela nostalgia. O mesmo Jim Crace que narra a putrefacção dos corpos, recorda o dia em que, pujantes, se conheceram. E a partir desse momento fundador, trá-los devagarinho, de trás para a frente, até o leito de morte.

"Que eu saiba, o modo de velar os mortos descrito no livro não existe, é uma invenção minha. Pensei que recordar a vida de uma pessoa, contar história dela, seria uma boa forma de chorá-la. Se somos ateus – e acreditamos, como eu, que a morte é um fim absoluto – onde iremos buscar o nosso optimimo? Só nos resta voltar ao passado."

Shopping and fucking novels

Gentilmente, o autor pegou em Joseph e Celice e transportou-os do local e momento da sua morte até à cama onde acordaram no dia em que iriam morrer, devolvendo-os a um sítio seguro. "Todos nós morremos, acontece mais cedo ou mais tarde. Dizem que as duas únicas certezas que temos são a morte e os impostos. Agora estamos a pagar os impostos, a morte vem a seguir."

Qual é então o papel da literatura? "Estou farto dos romances ingleses que nos falam de relações superficiais, os ‘shopping and fucking novels’. Lamento dizê-lo, mas sou uma pessoa muita mais séria do que isso. Quero embrenhar-me em temas que me mistifiquem."

Como a morte. Mas abordá-la, mesmo na ficção, é um exercício doloroso, tanto para o escritor como para os leitores. "Se eles não quiserem ler o tipo de livros que escrevo não os leiam, peguem antes uma banda-desenhada. Os meus romances são castigadores, são exercícios literários de sério moralismo. Todo o meu otimismo é retirado de cantos escuros."

Daí a sua revolta contra os "shopping and fucking novels", e a sua visão cor-de-rosa da realidade. "Se num desses livros surge uma mulher com uma figura perfeita, nós sabemos que ela é a heroína, que vai ter uma vida estupenda e que será virtuosa. A seguir aparece um tipo giro, bem falante, e sabemos que ele será um herói, e tudo correrá bem."

O único problema é que a vida não é assim. "Quando observamos as pessoas de que gostamos, não vemos espécimes perfeitos, não vemos Brad Pitt ou Jeniffer Lopez, mas sim seres humanos de carne e osso. E o maior triunfo da nossa espécie é justamente o de sermos capazes de amar essas pessoas maculadas. Todas as personagens de todos os meus romances são difíceis de amar. É um ponto de vista optimista, porque prova que nos conseguimos amar uns aos outros mesmo não sendo perfeitos."

A visão "hollywoodesca" da existência, ao contrário, diz-nos que apenas podemos gostar das pessoas bonitas e virtuosas, o que é profundamente pessimista.

"Mesmo sendo uma pessoa política, não escrevo livros que fornecem respostas, mas sim que colocam questões. Se fosse um escritor político produziria obras socialistas e polémicas, que não teriam o poder de me transformar– pois já partiria para elas sabendo de antemão o que iria dizer. Mas ao escrever livros que colocam questões acerca da condição humana, e na medida em que desconheço as respostas, poderei descobrir algo de novo."

Com A Morte nas Dunas tentou produzir uma narrativa (sem Deus) que ajudasse a lidar com a morte. E concluiu que tinha falhado. "O romance oferece uma narrativa filosófica de conforto que me permite sentar-me num bar e falar da morte, mas apenas quando a morte está longe. Não acredito que me trará algum conforto real no momento em que um médico entrar na sala com um raio-x e me disser que tenho cancro. Ou quando o telefone tocar e alguém me disser que a minha mãe ou algum dos meus filhos morreu."

O romance disse-lhe, isso sim, que quando estiver face a face com morte, não haverá qualquer conforto. "E se calhar ainda bem que assim é. A nossa maior esperança é não haver conforto perante a morte, porque a vida é realmente bela e vale a pena agarrarmo-nos a ela. A Morte nas Dunas levou-me a perceber a fragilidade da filosofia e o modo como os optimismo e pessimismo do mundo andam de mãos dadas. E que não há conforto quando de facto morremos."

A descoberta não foi fácil. Jim Crace descreve-se como uma pessoa alegre, despreocupada, com quem é facil de se relacionar. Mas enquanto escrevia Quarentena, e mais tarde A Morte nas Dunas, foi acompanhado por uma longa depressão, como se tivesse febre. "E de facto, quando terminei o romance, parecia um professor no último dia do ano lectivo. Todas as doenças e infecções inundaram-me e caí doente durante vários meses. Mas o que podemos fazer? Uma pessoa escreve os livros que tem de escrever."

É o destino, sinónimo quase aceitável de Deus. Jim Crace prefere usar as palavras nature and nurture (natureza e nutrição/educação). "Acredito na natureza. O facto de nascermos com certas características imutáveis é uma espécie de destino. Mas acredito também em nutrição/educação, ou seja, aquilo que nos acontece em vida. Quando nascemos dão-nos dois sacos: um está cheio e não podemos fazer nada com ele, a não ser esvaziá-lo. O outro saco está vazio, e somos nós próprios a enchê-lo."

"Estranhamente – continua – o destino está a tonar-se cada vez mais um conceito científico. Os investigadores olham para os nossos genes e dizem: ‘estás destinado a ter cancro na mama’ ou ‘vais ser um excelente músico’. Acreditar no destino não é superstição."

HIGHLIGHTS

"Não há nada de indigno no facto dos amantes terem morrido nus na praia. O granito que lhes esmagou a cabeça é que foi indigno, porque os matou no meio do amor, violando-o. Recomendo sexo na praia a todos os meus leitores portugueses. Deviam ter uma praia mesmo junto a Lisboa consagrada a esse efeito. Mas levem toalhas. E tenham cuidado com a areia."

"O preço que pagamos pelo nosso avançado estado de ser é a morte. Se quiséssemos viver para sempre teríamos de ser como as amebas, que se multiplicam ao longo dos milénios mantendo os genes intactos. O problema é que elas não têm consciência do mundo. E o preço que nós pagamos pela consciência é a fatalidade da morte."

"Escrever para mim é como lançar papagaios de papel. O rapaz que segura nas mãos o cordel não controla o vento. E o vento que empurra o papagaio não controla o rapaz. Algures entre o vento e o rapaz, o papagaio está a ser mediado, está a criar um padrão. Para mim o papagaio é o romance. Apesar de ter o cordel na minha mão, não controlo o vento."

"É um erro pensar que a morte dos seres humanos é diferente, as pessoas esquecem-se que somos animais e morremos como eles. Sou fanático dos passeios a pé. Quando caminho no campo, ou ao longo da praia, encontro carcassas de raposas, de gaivotas, restos de caranguejos em putrefacção. A morte em termos absolutos está em todo lado. Mas a morte dos seres humanos é-nos escondida."

"As histórias é que nos tornam bem sucedidos enquanto seres humanos. É com elas que arranjamos namoradas e empregos. Nos restaurantes, nos bares, em casa, as pessoas contam e ouvem histórias. E se o fazemos há milhares de anos, não é por acaso, mas sim por razões evolucionistas – ao narrar temos uma vantagem sobre os outros animais."

"Escrever para mim é como lançar papagaios de papel. O rapaz que segura nas mãos o cordel não controla o vento. E o vento que empurra o papagaio não controla o rapaz. Algures entre o vento e o rapaz, o papagaio está a ser mediado, está a criar um padrão. Para mim o papagaio é o romance. Apesar de ter o cordel na minha mão, não controlo o vento."

"Quando observamos as pessoas de que gostamos, não vemos espécimes perfeitos, não vemos Brad Pitt ou Jeniffer Lopez, mas sim seres humanos de carne e osso. E o maior triunfo da nossa espécie é justamente o de sermos capazes de amar essas pessoas maculadas. Todas as personagens de todos os meus romances são difíceis de amar. É um ponto de vista optimista, porque prova que nos conseguimos amar uns aos outros mesmo não sendo perfeitos."